miércoles, 1 de abril de 2009

ÁGUA CORTADA



Pia da cozinha de minha casa. Foto RaiCFerraz/março-2009



Minha postagem de hoje é uma crônica de meu cotidiano [ durante a semana passada] a partir de "recados" que eu resolvi inventar que remeti à página do FACEBOOK de uma amiga, muito querida, chamada Betânia:



Fotografia RCF/março-2009


PARTE I

Betânia, tu nem sabe como eu aprendi esses dias com minha água cortada. Essa expressão "água cortada", tem coisa mais de classe do que isso? Tem não. Tem não, nêga. Olhe, neguim pode até ter particiado de umas três ações do Greenpace...ajudado a recolher assinatura para emenda contra as vaquejadas e tal e coisa, mas se nunca pronunciou: "Eita, porra, cortaram minha água!", nunca vivenciaram esse sentimento de pertença ao meio popular. Até mesmo o fato linguístico, a enunciação quase a-gramatical - "água cortada" - já é presença de um corpo que está num tempo e geografia simbolicamente marcados pela interdição ao acesso àquilo que é básico e imprescindível : a água. Minha neguinha, pois a pobre de minha sobrinha num tava juntando garafa pet pra fazer un "pufe" - é a febre do momento da decoração e da estética reciclagem no Brasil entre o meio popular e dos classe média "políticamente corretas"- tão cheias de boas intenções, mas tão conservadoras e feias que nem sei.

PARTE II
Eu disse " É o quê? Pufe, que bixiga de pufe...vou encher essas garrafas todinhas agorinha...mas agora pronto!Eu sem água pra fazer um café e tu intucando garrafa pra enfear a tua casa?Passa. E me ajuda a lavar e encher. Ela é boazinha, resignada??? É nada. Foi me ajudar reclamando e disse que eram emprestadas. Só sei que quando eu dei fé, era uma ruma de cilindros verdes plásticos, e o sol do pingo do mei dia, acendendo eles...pareciam uns butijões de luz esverdeada. Com essa água eu lavei prato, lavei as mãos, fiz café, lavava os pés antes de dormir...e ainda bebia, com um medo de se acabar, que só tu vendo. Eu olhei assim pra mim e disse: Rai, meu filho, só pode ter sido alguma praga de tanto que tu cantarolou o tal do "Ileaô, Ileaô"...sim, porque isso deve de grudar no "subconsciente" da gente. Só pode ser.






PARTE III


Pois a água de beber que butava na geladeira até uma lembrancinha de gosto de guaraná tinha...porque aquela química fica entranhada ali, né? Aquele cheiro que simula o do guaraná. Ôxe, com uma de um litro eu lavava os pratos do almoço, incluindo as panelas e os utensílios de fazer café: bule, colheres, xíca ras...e com metade da outra eu enxaguava. E tudo ficava bem limpo. Ainda aproveitava pra limpar a pia com aquela água do sabão. Os "banhos" mesmo eram em casa de Jorda.


Pia do banheiro de minha casa...torneira sem água. RCF/03/2009




PARTE IV
Mas de manhã mesmo com uma garrafa de um litro dava pra escovar os dentes, lavar o rosto e sobrava direitinho um tanto pra me ajudar a fazer a barba. Nessas horas me vinha um ódio daquelas pessoas que ficam de magueira ligada lavando o terraço, lavando carro "estruindo" um bem tão impr encindível que a civilização e modernidade trataram de encanar. Ainda bem, que não é em garrafa pet. É por isso que a "água" - o elemento químico H2O e a palavra mesmo tem em nosso imaginário, no Nordeste do Brasil, esse sim bolismo de uma força expressiva que só nós conseguimos apreender bem.

PARTE V
"tá conversando miolo de pote?"; "só segura no pote quem tem a rudia por perto"..essas coisas. A chuva cantando. Quem entende isso? Os sapos tudo com a bixiga dizendo "foi quinhetos réis" -quem ouve isso? Ave Maria, tô morrendo de sede - Né hipérbole não. É de verdade. Nada de figuração de linguagem não. O bute. Nao é. É enunciação da secura, do medo do que os olhos d'água ceguem tudim e a gente seque. O candomblé é uma prática religiosa empregnada disso, desse sentimento de que falo: Oxum, Iemanjá, Iansã...e até os outros do panteão da mística-afro reverenciam o que é líquido e não tem vértebra, o que escorre e flui, o que molha como sagrados.


Representação de OXUM - Orixá das águas doces.


PARTE VI
Nisso o Nordeste é África. Vocês sabem o que é o Velho Chico? Vocês sabem o que o Governo brasileiro está construindo e emplementando em termos de políticas para os recursos hídricos? E o Amazonas, o rio-mar, vocês sabem o que é aquilo? A água é um bem não renovável: meu Deus, que é que a gente anda ensinando ou deixando de ensinar em nossas escolas? Todos os três rios que correm pro mangue de Bayeux são esgotos a céu aberto. Eu quero um golim d'água.!Quero ver a fervura das coisas, o rebuliço dos trovão. Amanhã a Companhia de Águas vem re-ligar meu fornecimento. Eu nunca mais serei o mesmo. Quando eu sentar nos pufes de Joana, eu vou ter umas coisinhas - dois dedos de prosa pra conversar com ela.















Vista Panorâmica do Rio Sanhauá - Bayeux/João Pessoa-PB/Brasil


Saludos a todas e todos - que a gente tenha uma semana aquática.

Mercu.rio. rai, o sedento - do Brasil

5 comentarios:

Armila dijo...

Como sempre eu fico encantada com tudo o que tu escreves.Mas estes textos são de uma profundidade que só quem vive nestas águas pode sentir.Te admiro mais ainda.me fizeste lembrar Inácio de Loyola Brandão em "Não verás país nenhum".
Tempo da delicadeza

SATURNINO dijo...

Entendí el texto a medias (más bien 1/4)... y eso que lo pasé por el traductor de google. Pero casi peor.

Dios mío la producción literaria que provoca un pequeño corte de agua durante un par de dias.
Si te quitan el agua un año escribes el Quijote

Mercu, rio, rai dijo...

Armila [haverá nome possível de tan gran beleza e de vontade de pronunciar??? Tua relação com a palavra e com teu nome me suspendem também. Tu já sabes.] Quanto ao texto - era primeiro de abril, no Brasil hay a tradición de ser lo dia da mentira. Hay yo pensei que las narrativas de nuestro cotidiano - o jeito como dellas falamos non son mentiras, nem verdades absolutas, son una outra cosa: san re-criação, apropriação onde historicidade e ficção literária se beijam, se agarram, se acariciam. Obrigado pela maneira com que me tocas tu, Armila mar, mirala.

Saturnino, mi hermano, quen me dera una cerva [asi chaman lo pueblo la cervejita] un Cervantes? No, no. Nem qui me cortassem água, luz, telefone e Net. 1/4 és alguna cosa, hombre-sancho, si? Pero tu hay desenvolvido tua compreension de mi lengua...si, si...Lo Google debe de ter ficado maluco, coitado delle. Bueno, continue, continue. Beba água, Satur está com sede, sancho-saturnal.

SATURNINO dijo...

me enteré por el blog de lusika (link en el blog) que en suiza el uno de abril se celebraba el día de la mentira. Ahora me entero de que es igual en brasil... que cosas. Y el 28 de diciembre?

Armila dijo...

Bem, quem nasce com o dom da escrita e tem o conhecimento da língua,pode,porque não, se aventurar a escrever um tratado sobre o corte da água.Arriba D. Miguel! E a respeito de Armila, nome que também me arrepia,é o nome dado por Italo Calvino à uma de suas cidades invisíveis.